In Fios da Meada - testemunhos para uma colecção imaterial a casa reavidaOs primeiros esquissos a carvão em pequenas folhas de papel vegetal datam de 1991, altura em que o arquiteto Victor Mestre começou a desenhar o projeto de recuperação, remodelação e restauro do Solar dos Zagallos, adquirido pela Câmara Municipal de Almada em 1982. “Foi um projeto em obra, pois o plano inicialmente previsto teve de evoluir e adaptar-se à medida que a obra avançava e se descobria o verdadeiro estado do Solar.” A sua larga experiência a trabalhar em Património fê-lo antever o processo em mutação que teria pela frente, e as dificuldades a superar junto dos trabalhadores e empreiteiros. “O caderno de encargos não podia ser entendido como lei, devia ser observado na presença de uma dimensão cultural. Se esta dimensão não estiver presente é muito perigoso. É preciso pensar o Património. Isso exige tempo e consciência.” Para Victor a sua presença na obra era, assim, fundamental, não só numa fase inicial para conhecer a equipa, mas igualmente ao longo de todo o trabalho. “É completamente diferente estar lá do que ir lá.” E essa proximidade permitiu-lhe acompanhar a par e passo as surpresas que o Património foi desvendando. Como ligações antigas no interior da casa que em obras intermédias se terão tapado. "Talvez com intenção de fechar caminho ao frio, mas que resulta no fechar do caminho ao ar, e isso pode ter consequências ao nível do arejamento e da criação de humidades. Quando se encerra um percurso ancestral algo pode vir a correr mal…” Um dos momentos principais da obra foi a sua defesa intransigente da inclusão de uma solução para a água. “Não valia a pena investir na recuperação da pintura dos tetos dos salões sem antes resolver a questão da água. A evidência de que o Solar se encontra construído sobre uma linha de água que desce da Quinta de Cima e vai embater nas costas do edifício principal certificava que, por muito restauro que se fizesse, a médio prazo as paredes iriam humedecer, descascar. A água não tinha caminho definido. Era preciso criá-lo.” A construção de um sistema de drenos internos e externos ligados à rede de águas pluviais passou a ser o percurso orientador que afastou a água do edifício. E apesar dos inesperados que esta obra desvendou e do consequente investimento em soluções justificadas, o projecto de recuperação do Solar é exemplo de boas práticas, possível de ser finalizado sem ultrapassar o orçamento. “- Vamos recuperar a azenha.” E assim se fez. “Vamos recuperar a estufa.” E assim se fez. No processo de recuperação Victor procurou fazer jus à História evolutiva do Solar, aos materiais anteriormente utilizados, à permanência global da Quinta. “Património não é a casca é o que está dentro.” E a aposta na continuidade da existência deste lugar foi trabalhada em paralelo com a sua actualização face às futuras necessidades do Solar. “É importante pensar o lugar com vista a que seja utilizado e vivido pelas pessoas, essa é a função da arquitetura. Não tornar os edifícios bibelots na cidade que perdem significado e valor se desabitados de gente.” Fotografias e documentos cedidos por Victor Mestre
In Fios da Meada - testemunhos para uma colecção imaterial A casa-berçoO sr. Piano e D. Maria do Rosário foram pais de um rapaz e duas raparigas. A filha mais nova, baptizada com o nome da mãe, casou em casa, tal como os irmãos. A capela decorou-se com flores para a missa de casamento, os convidados organizaram-se na escadaria para a fotografia de grupo, os salões encheram-se de gente ao redor das mesas. Por vários anos Maria do Rosário viu suspensa a concretização do seu desejo de ter um filho, o que levou ao prolongamento da sua estadia em casa dos pais. Quando finalmente em 1969 deu à luz um rapaz, que recebeu o nome do avô, António Piano, ela deixou-se ficar na sua casa de sempre. Se as recordações que António Piano consegue recuperar dos avós são ténues, pelo falecimento do avô tinha ele 4 anos e da avó um ano depois, a sua infância vivida no Solar deixou-lhe, em compensação, marcas profundas. Viu-se criança diante de uma grandiosa propriedade, apenas com os pais junto de si e os caseiros no topo da Quinta. Acentuou-se-lhe, no entanto, a sensibilidade para apreender o lugar onde vivia: “Mesmo sendo uma criança eu sentia que a vida no Solar era temporária, que a estadia aqui era de curto prazo. Tinha essa noção. Então vivia isto intensamente.” Ficou-lhe presente o legado de generosidade e dádiva do avô, bem como a confiança nos outros. “Lembro-me que o portão para a rua estava sem chave, era só empurrar. Os meus amigos batiam na janela «Ó Tonho, anda jogar!». O pátio era o local de eleição pelas balizas naturais que se enfrentavam – o portão de um lado, a escadaria do outro.” “Também brincávamos muito na Alameda. E como o jardim começava a ficar selvagem, com as ervas altas e os caminhos descuidados, eu desafiava os meus amigos para pegarem nas enxadas e concertarmos o terreno.” António e os pais viviam no rés-do-chão e primeiro andar do edifício principal. “A área da casa utilizável terminava na sala da televisão e do telefone, era a sala de estar. Não utilizávamos os salões, que eram muito frios e estavam a degradar-se.” “Foi no início dos anos sessenta que os meus primos terão pedido autorização ao avô para organizar uma festa dançante. O avô deixou. Como era seu hábito não teve uma postura de fechamento e posse em relação à casa. E assim se transformaram as antigas cavalariças – onde é hoje a oficina de olaria – numa «boate». Os meus primos, muito mais velhos do que eu, passaram a organizar festas no Verão para os amigos.” Desse grupo fazia parte José Matos e Silva que, na primeira pessoa, partilhou: “Passávamos as férias na Costa da Caparica, numa casa alugada na Quinta de Santo António. Durante o dia estávamos por lá, entre praia, passeio e picnics no fim da linha do comboio Transpraia, na Fonte da Telha. À noite éramos convidados para as festas dos netos Piano. Havia um gira-discos, comes e bebes, e raparigas bonitas.” Segundo José, “o Jardim de Aparato era um óptimo refúgio para o namoro. Na verdade, foi no Solar que vivi a minha primeira demonstração de amor. O primeiro passo era dar a mão, mas um momento muito especial era encostar a cara a dançar. Foi aqui que o vivi pela primeira vez.” E se o Solar foi fértil em partilha e amor, foi também um hospedeiro exigente – o tamanho da propriedade e as diversas valências ali reunidas implicavam uma manutenção empenhada e dispendiosa. Nos anos setenta, enquanto António crescia, a propriedade enfraquecia. “Eu tinha 12 anos quando saí do Solar. Depois de décadas de vida neste lugar havia, naturalmente, muita coisa acumulada, coisas que vão ficando na garagem, na arrecadação, no sótão... A família juntou-se para se despedir da casa e resolver futuros. Houve missa e jantar. Não me lembro do tema das conversas, mas lembro-me da família reunida. Isso sim era importante para mim.” Fotografias cedidas por António Piano
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Outubro 2018
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